Metamorfose e mito: da forma e seus limites

Minicurso apresentado por Flávia Regina Marquetti & Wilson A. Ribeiro Jr. durante a XVIII Semana de Estudos Clássicos de Araraquara (Metamorfoses no Mundo Antigo, FCLAr/UNESP - Araraquara, SP, 27-30 de maio de 2003). Texto de Wilson A. Ribeiro Jr.

dafne
Apolo alcança Dafne, que começa a se transformar em loureiro. Gravura sobre papel de Agostino Veneziano (fl. 1509-1536), 1515. The British Museum (inv. H,2.70), CC BY-NC-SA 4.0

Resumo. Uma quantidade significativa de mitos gregos descreve as mais variadas metamorfoses, tanto entre seres humanos como entre divindades. Certas metamorfoses permitem que os deuses alcançem seus desígnios; outras concedem ao homem a possibilidade de se furtar aos desejos dos deuses. As mudanças de forma tanto podem ser definitivas como transitórias, pois sua duração está vinculada estreitamente à sua finalidade. Neste minicurso serão descritas, sucintamente, as metamorfoses dos mitos menos conhecidos e discutidos os fundamentos antropológicos que regem as transformações humanas e divinas.

Ementa

  • As formas do desejo: Cronos, Zeus, Posídon, Deméter, Aqueloo.
  • Punição e recompensa: Tirésias, Ácteon, Galatea e Pigmalião, Atalanta, Circe.
  • Mudança e fuga: Nereu, Proteu e Tétis; Dáfne, Siringe, Ifigênia, Tereu, Dioniso.
  • A metamorfose consolatória: Níobe, Ciparisso, Galateia e Ácis.
  • Formas de engano: Héracles, Pasífae, ursas de Brauron e rapazes no culto a Ares, Prétides, Bacantes.
  • A metamorfose como origem: os mirmidões, Deucalião e Pirra.
  • As formas do sangue derramado: Jacinto, Adônis, Narciso, Átis.

Apresentação e roteiro

A palavra metamorfose, “mudança de forma”, vem do verbo μεταμορφόω, “eu tranformo”. Marca do sobrenatural, do maravilhoso e do fantástico, é um dos temas-chave da mitologia grega.

As principais fontes para o estudo das metamorfoses são os documentos iconográficos (cerâmica, relevos, mosaicos, etc.) e a literatura, especialmente a do Período Helenístico em diante. Em Homero, os relatos de metamorfoses são raros; em Hesíodo e Píndaro, um pouco mais frequentes; nos poetas trágicos, pouco mais de vinte relatos podem ser encontrados. Os principais autores tardios são Apolônio de Rodes (séc. -III), Eratóstenes (-275/-195), Nicandro (séc. -II), Ovídio (-43/17), Pseudo-Apolodoro (séc. II), Higínio (séc. II), Antoninus Liberalis (séc. II-III) e Boios (Período Helenístico).

A metamorfose

Para os antigos, a metamorfose era um dos mais importantes aspectos da ação divina; só os deuses podiam metamorfosear a si próprios e aos outros. Os deuses metamorfoseavam-se ou para atingir seus desígnios (Zeus e suas amantes), ou por piedade (Níobe), ou punição (os piratas de Dioniso) ou, ainda, como um sinal para os homens.

Para mim, quando os
deuses realizam maravilhas, nada parece
ser inacreditável.
Píndaro, Pitícas 10.75-77

As metamorfoses podiam ainda ocorrer de uma outra maneira: através da magia. Exemplos típicos podem ser encontrados no mito de Circe (cf. Odisseia) e do asno Lúcio (cf. textos de Luciano e Apuleio).

O papel das transformações no mito tem sido estudado desde a Antiguidade. Com o advento dos estudos antropológicos do século XIX, esse fenômeno foi considerado evidência de primitivo estágio da religião grega (deuses-animais, rituais de passagem, cultos conservados durante gerações, etc.). Outras explicações seriam a existência de história folclórica prévia ou a simples invenção literária (metáfora da morte e formas de fuga, por exemplo).

Estudos recentes, em especial os de Irving (o.c.), consideram a metamorfose um importante elemento narrativo que, além de ilustrar as mudanças de categoria exigidas pela narrativa mítica, evoca respostas imaginativas, emocionais e torna a história excitante, tocante ou divertida...

Classificação

Muitos dos relatos tardios são “etiológicos”, i.e., explicam a existência de alguma coisa, como uma ave ou uma árvore, ou “terminais”, i.e., marcam o desfecho da história. Um tipo especial de relato terminal, a transformação em estrela ou constelação, é chamado de catasterismo.

Eis uma classificação simplificada das metamorfoses míticas (1) e alguns exemplos:

MAMÍFEROS. Actéon e Calisto, Ió, Licáon, piratas de Dioniso, companheiros de Odisseu, Lúcio (2).

AVES. Filomela e Tereu, Aléctrion, Plêiades (3).

PLANTAS. Fílira, Dafne, Esmirna-Mirra (árvores); Adônis, Jacinto, Narciso (flores).

PEDRA. Níobe, Alcmena, vítimas de Medusa, Cércopes, Licas.

ÁGUA. Ácis, Lâmia.

MUDANÇA DE SEXO. Tirésias, Ceneu (literais); Aquiles, Héracles (não-literais, i.e. “transvestismo”).

ALTERNADORES DE FORMAS ("shape-shifters"). Proteu-Nereu, Tétis, Nêmesis, Dioniso.

DIVINIZAÇÕES. Ino-Leucoteia, Ifigênia-Hécate, Héracles.

MISCELÂNEA. Egina (ilha), Aracne (aranha), Cadmo e Harmonia (serpentes), espartos e mirmidões (homens), Titono (cigarra), Órion (estrela).

TRANFORMAÇÕES DIVINAS ("pseudo-metamorfoses"). Zeus (nas aventuras amorosas, Deméter (fugindo de Posídon?), Aqueloo.

Textos e imagens selecionadas

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Leituras recomendadas

APOLODORO. Biblioteca Mitologica. Trad. J.G. Moreno. Madrid: Alianza, 1993.

BURKERT, W. Religião Gega na Época Clássica e Arcaica. Trad.: M.J. Simões Loureiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

CAMPBELL, J. As Máscaras de Deus - Mitologia Primitiva. Trad.: C. Fischer. São Paulo: Palas Athena, 1997.

DOWDEN, K. Os Usos da Mitologia Grega. Trad.: C.K. Moreira. Campinas: Papirus, 1994.

ELIADE, M. Tratado de Historia de las Religiones - Morfología y Dinámica de lo Sagrado. Madrid: Cristiandad, 1981.

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GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Trad.: V. Jabouille. Lisboa: DIFEL, 1993.

IRVING, P.M.C. Metamorphosis in Greek Myths. Oxford: Clarendon Press, 1990.

KERÉNYI, K. Os Deuses Gregos. Trad. O.M. Cajado. São Paulo: Cultrix, 1993.

______. Os Heróis Gregos. Trad. O.M. Cajado. São Paulo: Cultrix, 1993.

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Notas

  1. Apud Irving, o.c. (com leves modificações e pequenos acréscimos).
  2. Personagem de Luciano de Samósata (séc. II), mais conhecido entre nós pela versão latina de Apuleio (O Asno de Ouro).
  3. Na variante lendária mais conhecida, as Plêiades são transformadas em estrelas.

Resumo publicado na extinta revista eletrônica Scripta Manent, Araraquara, v. 4, n. 1, p. 7, 2003.