A medicina antiga até Hipócrates

Minicurso ministrado durante a XI Reunião da SBEC em Araraquara, de 4 a 7 de outubro de 1999.

[ em andamento ]

Em todo lugar e em todas
as épocas houve médicos
.
(Jaeger, 1986)

Resumo dos tópicos abordados durante o curso, mais uma bibliografia básica.

Medicina Primitiva

Refere-se à medicina praticada durante a Idade da Pedra, que se divide em Paleolítico (até -8000), Mesolítico (-8000/-6000) e Neolítico (-6000/-3000).

A doença é mais antiga que o homem: as bactérias, que estão entre os principais agentes causadores de doenças, existem há pelo menos 3,8 bilhões de anos. Nosso mais antigo ancestral com evidências de doença óssea era um Homo erectus de 800.000 anos atrás.

Os homens da Idade da Pedra eram acometidos pelas mesmas doenças que o homem moderno. Eram bons observadores, e descobriram a estrutura e função básica de alguns órgaos, como o coração, e a ação medicinal das plantas, porém atribuíam a causa das doenças a poderes sobrenaturais existentes na Natureza, de alguma forma relacionados à terra e aos animais.

Os primeiros praticantes da Medicina devem ter sido os feiticeiros-médicos, que utilizavam nos tratamentos agentes físicos como o frio e o calor, aplicavam plantas medicinais, efetuavam cirurgias como a trepanação craniana, realizavam rituais de cura em que certas características dos animais tinham papel muito importante, e sabiam como facilitar os partos.

Medicina Mítica

Era a medicina praticada basicamente durante a Idade do Bronze (-3000/-1100) e a antiga Idade do Ferro (-1200/-500). A fase mítica da Medicina na verdade começou em plena Idade da Pedra, teve seu apogeu entre -3000 e -500, adentrou os tempos históricos e existe até hoje.

Difusão:

A internacionalização da economia no Mediterrâneo a partir do IIº milênio a.C. permitiu o contato cultural entre as diversas civilizações da região.

Polos:

As civilizações arcaicas que mais influenciaram as culturas européias situavam-se no norte da África (Egito) e na Ásia Ocidental (Mesopotâmia).

Conhecimentos médicos:

— diagnóstico, tratamento e prognóstico já estabelecidos;
— conhecimento exato de muitas afecções de causa visível;
— aplicação de conhecimentos práticos eficazes associados à magia e encantamentos.

Prática médica:

— os sacerdotes-médicos, intermediários entre a divindade e doente;
— regulamentação da atividade médica (Mesopotâmia);
— as primeiras escolas médicas (Egito).

Egito Antigo

Várias divindades relacionavam-se com a medicina; a mais importante foi Imhotep (-2700/-2625), originariamente arquiteto e "vizir" do faraó Neterierkhet-Djeser, posteriormente divinizado.

Misturavam-se conhecimentos empíricos e crenças. O coração era o centro do sistema circulatório, sabia-se que a função vital residia na respiração e na circulação do sangue, mas o funcionamento de cada órgão era protegido por um deus em particular.

O estado natural era a saúde, a doença era uma punição divina ou ação dos mortos. Se a causa era visível (uma fratura, por exemplo), tratava-se através de conhecimentos adquiridos empiricamente, como manobras de redução, minerais e vegetais. Se a causa era invisível (uma artrite, por exemplo), era tratada com poções mágicas, encantamentos, rituais.

Os médicos de nível mais elevado eram também sacerdotes dos vários deuses. O bom médico seguia sempre os ensinamentos antigos; havia já diversos especialistas, e "escolas médicas" funcionavam em alguns dos inúmeros templos.

Mesopotâmia

Como no Egito, as divindades eram representadas com aspectos humanos e animais, e responsáveis tanto pela doença como pela sua cura (por exemplo: o demônio Pazuzu). O símbolo de um dos deuses, Ningishzida, era duas serpentes entrelaçadas.

O centro das funções vitais era o fígado. Apesar da capacidade de reconhecer doenças, eram muito importantes os sonhos e a adivinhação para o diagnóstico das doenças; o tratamento incluía minerais, vegetais e rituais mágicos para a expulsão dos "demônios".

O sacerdote-médico era sujeito a uma série de leis especiais (código de Hammurabi).

Grécia Antiga

As mais antigas informações provêm das obras de Homeros (c. -750). Reconhece-se a ação das divindades na causa e na cura da doença (Apolo-Peon, Ártemis, o centauro Quíron). Para o diagnóstico das doenças não-traumáticas, adivinhos; para o tratamento, sacrifícios aos deuses.

A prática médica começou com os heróis-médicos, guerreiros conhecedores das artes da cura: cirurgias militares, e uso intensivo de plantas (conhecimento "adquirido no Egito"). O médico era altamente considerado.

Um dos heróis-médicos, Asclépio, foi divinizado no início da Idade Arcaica e tornou-se o mais importante deus da Medicina. Disseminam-se os templos da cura, onde os fiéis sonhavam e eram curados pelo deus. Os sacerdotes desses templos não praticavam a medicina.

A Medicina Racional

A medicina racional, não baseada em superstições e mitos, foi uma "invenção" dos gregos antigos. Com o advento dos filósofos pré-socráticos, que investigaram a estrutura do mundo natural sem recorrer a explicações míticas ou místicas, no final do século -VI a Medicina começou a sair da esfera da magia e a entrar no domínio da ciência.

Surgiram então os primeiros indivíduos dedicados exclusivamente à arte da cura. As primeiras referências históricas apontam médicos nas colônias gregas ocidentais e orientais (Magna Grécia, Cós e Chipre) e o mais famoso deles, graças ao historiador Heródoto, foi Demócedes, médico de Crotona (Magna Grécia) que viveu algum tempo entre os persas.

Por volta da metade do século -V os médicos gregos já haviam desenvolvido teorias para explicar o funcionamento do corpo humano e o mecanismo das doenças. Suas idéias eram erradas, porém extremamente consistentes com os conhecimentos científicos da época. Os princípios de higiene, alimentação e exercícios que utilizavam no tratamento dos doentes, no entanto, eram corretos em grande parte e são válidos até o presente.

A Medicina já era uma profissão respeitada, praticada em consultórios e remunerada de comum acordo com o doente, quando ele tinha meios para isso. Não era requerida, todavia, nenhuma qualificação formal, e ao lado de médicos sérios proliferavam muitos charlatães. Devido ao caráter estritamente patriarcal da sociedade grega, somente os homens tinham acesso à profissão. E todos os sofrimentos do corpo eram da alçada do médico, inclusive os problemas odontológicos; além de tratamentos clínicos, geralmente à base de plantas e laxativos, cirurgias rudimentares já eram praticadas com relativo sucesso.

Os dois mais importantes e influentes centros de Medicina no século -V foram as "escolas" de Cnido, na Anatólia, e a da ilha de Cós, na costa ocidental da Ásia Menor. O mais importante médico da época foi o famoso Hipócrates, originário da ilha de Cós que, segundo a tradição, deu grande impulso à Medicina em todos os seus aspectos.

A medicina atual, sem dúvida alguma, é ainda uma Medicina eminentemente hipocrática...

A Coleção Hipocrática

se está presente o amor ao homem, está também presente o amor à arte. [CH, Pracepta, VI]

O Corpus Hippocraticum é uma coleção heterogênea de escritos médicos em dialeto iônico reunidos ao longo de quase sete séculos. São aproximadamente 60 tratados de temática muito variada, distribuídos em cerca de 70 livros.

Os textos podem ser organizados de várias formas. Além de tratados médicos propriamente ditos, há vários outros tipos: conferências sobre medicina e filosofia, textos para leigos, notas para orientação de alunos, rascunhos, e minutas de discursos. A extensão e a qualidade é muito desigual.Eis uma classificação simplificada:

  1. Textos de caráter geral:
    1a - Sobre a arte da medicina
    1b - Sobre o comportamento do médico
  2. Textos de conteúdo anatomofisiológico
  3. Textos dietéticos
  4. Textos de patologia geral
  5. Textos de patologia especial
  6. Textos de conteúdo terapêutico
  7. Textos cirúrgicos
  8. Textos de conteúdo variado

Os "livros" da Coleção Hipocrática foram considerados os textos básicos da medicina no Ocidente até fins do século XVIII, e somente as modernas descobertas da ciência, a partir do século XIX, suplantaram sua importância nas escolas médicas. O método de abordagem do doente e da doença, os princípios básicos de diagnóstico e tratamento, e mais as bases filosóficas e éticas estabelecidas pela Coleção, todavia, continuam tão atuantes hoje como há mais de 2.000 anos.

Pela variedade de estilos, os tratados hipocráticos foram escritos por diferentes pessoas e em diferentes épocas. Os mais antigos datam provavelmente de -450/-430, e os mais recentes dos séculos II e III de nossa era; somente no século X estabeleceu-se uma lista definitiva. Embora a coleção tenha sido tradicionalmente atribuída a Hipócrates de Cós, a autoria de nenhum dos textos pôde ser vinculada com qualquer grau de certeza a ele.

Veja também a apresentação, tradução, comentários e notas ao Juramento Hipocrático, o mais conhecido dos textos da Coleção Hipocrática.

Bibliografia básica

Histórias da medicina

  • Andrade Lima, D.R. & Smithfield, R.W. Manual de História da Medicina. Rio de Janeiro: Medin, 1986
  • Lyons, A.S & Petrucelli, R.J. Medicine, an Illustrated History. New York: Abrams, 1978
  • Margotta, R. História Ilustrada da Medicina. Lisboa: Centralivros, 1996
  • Palermo, E. Enfermos, médicos y Sociedades en la Historia. Buenos Aires: Cientec, 1989
  • Souza Melo, J.M. (ed.). A Medicina e sua História. Rio de Janeiro: EPUC, 1989
  • Thorwald, J. O Segredo dos Médicos Antigos. São Paulo: Melhoramentos, 2ª ed., 1989

Textos sobre a medicina grega

  • Ayache, L. Hippocrate. Paris, PUF, 1992
  • Bauman, H. Le Bouquet d'Athéna / Les plantes dans la mythologie et l'art grecs. Paris: Flammarion, 1984
  • Brandão, J.L. Doentes, Doença, Médicos e Medicina em Luciano de Samósata. Cad. Hist. Fil. Ci. Série 2 2(2):145-164, 1990
  • Hipocrates. De La Medicina Antigua (vers. Conrado Eggers Lan). México: Univ. Nacional Autónoma, 1987
  • Jaeger, W. A Medicina como Paidéia. In: _____, Paidéia, a Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986, pág. 687-725
  • Jones, P.V. (org.). Mito, Filosofia e Medicina / Os médicos gregos. In: _____, O Mundo de Atenas. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pág. 285-290 e 193-195
  • Jouanna, J. Hippocrate: por une archéologie de l'école de Cnide. Paris: Belles Lettres, 1974
  • Kerényi, C. Le Medecin Divin. Bâle: Ciba, 1948
  • Lesky, A. As Ciências. In: _____, História da Literatura Grega. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995, pág. 516-526
  • Longrigg, J. Greek Rational Medicine. London: Routledge, 1992
  • López-Férez, J.A. (ed.). Las ciencias / La colección hipocrática. In: _____, Historia de la Literatura Griega. Madrid: Cátedra, 1998, pág. 613-649
  • Marsico, C.T. Modelos de Medicina en el Banquete y la República de Platón. Hypnos 3(4): 168-180, 1998
  • Mugler, C. Médicaments, Philtres, Poisons. In: _____, Les Origines de la Science Grecque chez Homère. Paris: Klincksieck, 1963, pág. 147-152
  • Nestle, W. La Medicina (siglo IV) / La Medicina (El Helenismo). In: _____, Historia del Espiritu Griego. Barcelona: Ariel, 3ª ed., 1981, pág 231-232 e 286-287
  • Rocha Pereira, M.H. A Ciência no Séc. V a.C.: a Criação da Medicina. In: _____, Estudos de História da Cultura Clássica I. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995, 7ª ed., pág. 466-470
  • Ronan, C.A. Hipócrates de Cós e a Medicina Grega. In: _____, História Ilustrada da Ciência, vol. I. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, pág. 88-100
  • Temkin, O & Temkin, C.L., ed. Ancient Medicine / Selected Papers of Ludwig Edelstein. Baltimore: The Johns Hopkins Univ. Press, 1967
  • Vieira, T. Tirania Olímpica. In: G. Almeida & T. Vieira, Três Tragédias Gregas. São Paulo: Perspectiva, 1997, pág. 133-141

A medicina na literatura grega

  • Bornheim, G.A. Alcmeão de Cróton. In: _____, Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1989, pág. 51-52
  • Diels, H. & Krantz, W. Die Fragmente der Vorsokratiker, vol. I. Berlin, 3ª ed., 1956
  • Erodoto. Storie (Libri III-IV). Milano: Rizzoli, 3ª ed., 1993
  • Herôdotos. História (trad. M.G. Kury). Brasília: Ed. UNB, 1985
  • Homero. Ilíada (trad. Eugène Lasserre). São Paulo: Círculodo Livro, 1983
  • Homero. Odisséia (trad. Médéric Dufour). São Paulo: Abril, 1978
  • Kirk, G.S. e outros. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 4ª ed., 1994
  • Omero. Iliade (trad. Rosa Calzecchi Onesti). Torino: Einaudi, 1990
  • Omero. Odissea (trad. Maria Grazia Ciani). Venezia: Marsilio, 1994
  • Vieira, T. Prometeu Prisioneiro de Ésquilo. In G. Almeida & T. Vieira, Três Tragédias Gregas. São Paulo: Perspectiva, 1997, pág. 133-176

Traduções da coleção hipocrática

  • Gourevitch, D. e outros. De l'Art Médical (trad. d'Émile Littré). Paris: Librairie Genérale, 1994
  • Hippocrates Volumes I-VIII (transl. W.H.S. Jones e outros). London: Harvard University Press, 1923-1995
  • Ippocrate. Testi di Medicina Greca (intr. V. di Benedetto). Milano: Rizzoli, 1983
  • Hippocratic Writings (transl. Francis Adams). Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952, (repr. 1980), vol. 10, pág. 1-160
  • Lloyd, G.E.R. (ed.). Hippocratic Writings (tranl. J. Chadwick). London: Penguin, 1978
  • Tratados Hipocráticos I-VII (C. García Gual, introd.). Madrid: Editorial Gredos, 1983

World Wide Web