Do horrível perigo da leitura, de Voltaire

François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido por Voltaire, foi um dos mais importantes pensadores e escritores do Iluminismo francês, além de crítico mordaz dos costumes e práticas da sua época. Este pequeno panfleto contra os censores e a censura de ideias e obras literárias, De l’horrible danger de la lecture, data de 1675.

mufti
Um mufti turco in 1687. Gravura de Andreas Matthäus Wolfgang. Wikimedia Commons, domínio público

Nós, Joussouf-Chéribi, pela graça de Deus mufti[1] do Santo Império otomano, luz das luzes, eleito entre os eleitos, a todos os fiéis que as presentes (ordenações) vejam, tolices e prosperidade.

Como se deu que Saïd Effendi[2], anteriormente embaixador da Sublime Porta[3] junto a um pequeno Estado denominado Frankrom[4], situado entre a Espanha e a Itália, introduziu entre nós o pernicioso uso da impressão, tendo consultado a respeito dessa novidade nossos veneráveis irmãos, os cádis e imãs[5] da cidade imperial de Istambul[6] e, principalmente, os faquires[7] conhecidos por seu zelo contra a inteligência, pareceu bom a Maomé e a nós condenar, banir, anatematizar a dita infernal invenção da imprensa, pelos motivos enunciados a seguir.

1º  Essa facilidade de comunicar seus pensamentos tende evidentemente a dissipar a ignorância, guardiã e salvaguarda dos Estados bem governados.

2º  É de se temer que, entre os livros trazidos do Ocidente, possa haver uns sobre a agricultura e sobre os meios de aperfeiçoar as artes mecânicas, obras que poderiam, ao longo do tempo — Deus não o queira —, despertar o gênio de nossos cultivadores e de nossos manufatureiros, excitar sua habilidade, aumentar suas riquezas e inspirar-lhes, um dia, alguma elevação da alma e algum amor pelo bem público, sentimentos absolutamente opostos à sadia doutrina.

3º  Chegaríamos, finalmente, a ter livros de história livres do maravilhoso que mantém a nação em uma feliz estupidez. Teríamos, nesses livros, a imprudência de dar justiça às boas e más ações e de recomendar a igualdade e o amor pela pátria, o que é visivelmente contrário aos direitos d(este) nosso lugar.

4º  Poderia ocorrer, com o passar do tempo, que filósofos miseráveis, sob o pretexto ilusório, mas punível, de esclarecer os homens e torná-los melhores, viriam nos ensinar virtudes perigosas que o povo jamais deve conhecer.

5º  Eles poderiam, ao aumentar o respeito que têm por Deus, e imprimindo escandalosamente que ele tudo preenche com sua presença, diminuir o número de pelegrinos de Meca, em grande detrimento da saúde de suas almas.

5º  Aconteceria, sem dúvida, que em virtude de ler os autores ocidentais que trataram de doenças contagiosas, e da maneira de prevení-las, ficaríamos bastante infelizes ao nos garantirmos contra a peste[8], o que seria um atentado enorme contra as ordens da Providência.

Por essas e outras razões, para a edificação dos fiéis e pelo bem de suas almas, nós os proibimos de ler qualquer livro, sob pena de danação eterna. E, temendo que os tome a diabólica tentação de se educar, proibimos pais e mães de ensinar seus filhos a ler. E, para evitar qualquer desobediência à nossa ordenação, nós os proibimos expressamente de pensar, sob as mesmas penas; ordenamos a todos os verdadeiros crentes que denunciem ao nosso tribunal[9] qualquer pessoa que tenha enunciado quatro frases ligadas entre si, das quais pode-se inferir um significado claro e distinto. Ordenamos que em todas as conversas deve-se utilizar termos que nada significam, de acordo com o antigo costume da Sublime Porta.

E para impedir que qualquer pensamento entre de contrabando na sagrada cidade imperial, confiamos especialmente ao primeiro médico de Sua Alteza, nascido em um pântano do Ocidente setentrial, médico que, tendo já matado quatro pessoas ilustres da família otomana, está, mais do ninguém, interessado em evitar qualquer introdução de conhecimentos no país[10]; nós lhe damos o poder, pelas presentes, de mandar prender qualquer ideia que se apresentar por escrito ou de boca nas portas da cidade, e de nos trazer a dita ideia de pés e mãos atados, para lhe infligirmos o castigo que nos aprouver.

Dada em nosso palácio da Estupidez no dia 7 da lua de Muharem, no ano 1143 da Hégira.

Notas

  1. Jurista islâmico qualificado para emitir uma opinião (fátua) sobre pontos da lei islâmica.
  2. O diplomata Sahid Mehemet Effendi (falecido em 1761) é personagem histórico.
  3. Metáfora para os mais importantes centros administrativos do Império Otomano em Istambul.
  4. O reino da França, naturalmente.
  5. O cádi é um juiz muçulmano que julga segundo a xaria, o direito religioso islâmico; na época de Voltaire, imã era um título dado aos professores de direito e teologia islâmica.
  6. Constantinopla.
  7. Os faquires eram ascetas místicos associados à propagação do islamismo entre os séculos X e XIX.
  8. Alusão á inoculação contra a varíola, adotada por muitos países europeus e ainda contestada na França (em 1763, o Parlamento de Paris proibiu essa prática).
  9. No original, “officialité”, antiga denominação de um tribunal eclesiático da Igreja Católica.
  10. Ataque direto ao holandês Gerard van Swieten (1700-1772), influente médico pessoal da Imperatriz da Áustria, contrário à prática da inoculação contra a varíola. Quatro pessoas da família imperial da Áustria morreram de varíola em suas mãos entre 1761 e 1763.
  11. A Hégira, data sagrada para os muçulmanos, ocorreu em 622 d.C. No calendário cristão, o ano 1143 da Hégira corresponde a 1765.

De l’horrible danger de la lecture

Nous par la grâce de Dieu mouphti du Saint-Empire ottoman, lumière des lumières, élu entre les élus, à tous les fidèles qui ces présentes verront, sottise et bénédiction.

Comme ainsi soit que Saïd-Effendi, ci-devant ambassadeur de la Sublime-Porte vers un petit État nommé Frankrom, situé entre l'Espagne et l'Italie, a rapporté parmi nous le pernicieux usage de l'imprimerie, ayant consulté sur cette nouveauté nos vénérables frères les cadis et imans de la ville impériale de Stamboul, et surtout les fakirs connus par leur zèle contre l'esprit, il a semblé bon à Mahomet et à nous de condamner, proscrire, anathématiser ladite infernale invention de l'imprimerie, pour les causes ci-dessous énoncées.

1º  Cette facilité de communiquer ses pensées tend évidemment à dissiper l'ignorance, qui est la gardienne et la sauvegarde des États bien policés.

2º  Il est à craindre que, parmi les livres apportés d'Occident, il ne s'en trouve quelques-uns sur l'agriculture et sur les moyens de perfectionner les arts mécaniques, lesquels ouvrages pourraient à la longue, ce qu'à Dieu ne plaise, réveiller le génie de nos cultivateurs et de nos manufacturiers, exciter leur industrie, augmenter leurs richesses, et leur inspirer un jour quelque élévation d'âme, quelque amour du bien public, sentiments absolument opposés à la saine doctrine.

3º  Il arriverait à la fin que nous aurions des livres d'histoire dégagés du merveilleux qui entretient la nation dans une heureuse stupidité. On aurait dans ces livres l'imprudence de rendre justice aux bonnes et aux mauvaises actions, et de recommander l'équité et l'amour de la patrie, ce qui est visiblement contraire aux droits de notre place.

4º  Il se pourrait, dans la suite des temps, que de misérables philosophes, sous le prétexte spécieux, mais punissable, d'éclairer les hommes et de les rendre meilleurs, viendraient nous enseigner des vertus dangereuses dont le peuple ne doit jamais avoir de connaissance.

5º  Ils pourraient, en augmentant le respect qu'ils ont pour Dieu, et en imprimant scandaleusement qu'il remplit tout de sa présence, diminuer le nombre des pèlerins de la Mecque, au grand détriment du salut des âmes.

6º  Il arriverait sans doute qu'à force de lire les auteurs occidentaux qui ont traité des maladies contagieuses, et de la manière de les prévenir, nous serions assez malheureux pour nous garantir de la peste, ce qui serait un attentat énorme contre les ordres de la Providence.

À ces causes et autres, pour l'édification des fidèles et pour le bien de leurs âmes, nous leur défendons de jamais lire aucun livre, sous peine de damnation éternelle. Et, de peur que la tentation diabolique ne leur prenne de s'instruire, nous défendons aux pères et aux mères d'enseigner à lire à leurs enfants. Et, pour prévenir toute contravention à notre ordonnance, nous leur défendons expressément de penser, sous les mêmes peines ; enjoignons à tous les vrais croyants de dénoncer à notre officialité quiconque aurait prononcé quatre phrases liées ensemble, desquelles on pourrait inférer un sens clair et net. Ordonnons que dans toutes les conversations on ait à se servir de termes qui ne signifient rien, selon l'ancien usage de la Sublime-Porte.

Et pour empêcher qu'il n'entre quelque pensée en contrebande dans la sacrée ville impériale, commettons spécialement le premier médecin de Sa Hautesse[4], né dans un marais de l'Occident septentrional ; lequel médecin, ayant déjà tué quatre personnes augustes[5] de la famille ottomane, est intéressé plus que personne à prévenir toute introduction de connaissances dans le pays ; lui donnons pouvoir, par ces présentes, de faire saisir toute idée qui se présenterait par écrit ou de bouche aux portes de la ville, et nous amener ladite idée pieds et poings liés, pour lui être infligé par nous tel châtiment qu'il nous plaira.

Donné dans notre palais de la stupidité, le 7 de la lune de Muharem, l'an 1143 de l'hégire.

Referências

Moland, Louis (éd.). Œuvres complètes de Voltaire, v. 25. Paris: Garnier, nouv. éd.1883, p. 335-8.